Entre o santo e o cão: Eldevan lança “A Garróta de São Pedro” e acende a lamparina do folclore nordestino
No novo single, Eldevan troca as guitarras de paredes de som por um quintal de terra batida onde viola e zabumba conduzem uma narrativa maliciosa e supersticiosa. “A Garróta de São Pedro” nasce como um cordel cantado: versos curtos, imagens fortes e humor de feira livre, desses que fazem o povo repetir em coro antes do final do refrão.
A letra é um passeio pelo imaginário do interior nordestino. Os nomes e lugares — mulungu, cacimba, lamparina — acionam memórias táteis: a água fria no fim da tarde, o chiado distante das cigarras, o riso que corre solto no terreiro. Há o exagero poético típico dos causos, as criaturas da noite, o “cansanção” que arde e a sabedoria popular embutida no trocadilho. Eldevan ri do medo e, ao mesmo tempo, respeita o sagrado: “entre o santo e o cão” é onde mora o teatro da canção.
Musicalmente, a faixa pisa firme no baião e flerta com o forró de vaquejada. A viola abre espaço para um dedilhado arrastado, quase de procissão, que se resolve num ponteio vigoroso. A zabumba segura a espinha dorsal com marcação seca, enquanto ganzá e triângulo sugerem o passo do coco de roda. Tudo é pensado para soar orgânico, como se a banda estivesse no alpendre, gravando com as portas abertas para o vento.
A produção — assinada por Eldevan & Inteligência Artificial — não tira a rusticidade do registro. Ao contrário, emoldura o timbre áspero da viola, deixa o reverb respirar como igreja pequena e realça os graves da zabumba sem perder o chão de terra. A IA, aqui, funciona como alfaiate de som: ajusta, costura, segura a barra; a alma é da canção.
No centro, a tal “garróta”: personagem-símbolo, mais arquétipo que pessoa, que concentra desejo, perigo e riso. A graça do título está no jogo de espelhos — não é a de São Pedro, não é a do cão — ou talvez seja as duas ao mesmo tempo. O sertão, ensina Guimarães, é “dentro da gente”: Eldevan aciona essa chave e deixa que cada ouvinte reconheça, na própria memória, o sabor do sal sobre o melão que caiu no salgueiro.
“A Garróta de São Pedro” é, enfim, canção-cena: dá vontade de ver no palco, com dança e luz amarela, mas também de ouvir sozinho, de fone, na beira da noite. O Brasil cabe nessa mistura.
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